Espaços (in)seguros | A Praça da Aclamação


No início de agosto do ano de 2022, a cidade de Salvador começava o dia com a notícia de uma tragédia. A adolescente Cristal Pacheco, de 15 anos, havia sido morta por um disparo à queima-roupa, quando fazia seu percurso diário para a escola, em companhia da mãe e da irmã de 12 anos. O crime aconteceu às 7h da manhã quando foram abordadas por duas mulheres que visavam assaltar a família. O local foi a calçada em frente ao Palácio da Aclamação, no Centro da cidade, que já foi residência dos Governadores da Bahia por mais de 50 anos e hoje funciona como um espaço para eventos.

A morte da jovem Cristal apenas acendeu mais uma vez a luz vermelha de um problema antigo em muitos trechos da cidade de Salvador, que é a profunda ignorância em prover e manter espaços menos propensos à criminalidade. E aqui não se está falando, apenas, da ausência da segurança pública policial, que é necessária, mas da falta, mesmo, de um saber coletivo sobre o que pode tornar ruas, bairros e cidades mais seguras. Ignorância da população como um todo mas, sobretudo, dos órgãos públicos e os agentes que atuam em conjunto para projetar, construir, reformar, legislar e cuidar dos espaços públicos.

Essa falta de know-how não é só de Salvador mas de todas as cidades brasileiras e atinge arquitetos, urbanistas, gestores públicos e todos os moradores que perderam, ao longo do tempo, a capacidade de ver nos espaços em comum, a extensão da sua moradia. Isso acontece porque, há mais de 60 anos, a cidade passou a crescer de forma fragmentada, esgarçada por grandes distâncias e vias motorizadas, esquecendo a importância da escala humana, de proximidade, que sempre nos proveu a sensação de segurança e algumas das qualidades fundamentais de espaços mais seguros que são a vigilância natural, a territorialidade e a delimitação de acessos e áreas restritas.

Nada disso é novo. Há literatura especializada desde o final da década de 50 e, de forma sistemática, sob a rubrica de CPTED (crime prevention through environment design), desde o início dos anos 70. Que esse período coincida com o início da crítica mais dura ao urbanismo modernista, não é mera coincidência. Ou seja, um campo de pesquisa e atuação amadurecido, com exemplos e mais exemplos de casos bem sucedidos e municipalidades ao redor do mundo que mantém departamentos inteiros cuidando do desenho das cidades com vista a torná-las mais seguras.


A Praça da Aclamação






Posso voltar em outras postagens às inúmeras mazelas que o urbanismo de matriz modernista legou à Salvador mas, por enquanto, vou me deter em algumas características do desenho urbano da praça que fica em frente ao Palácio da Aclamação e que leva o mesmo nome.

A praça, de formato triangular, é definida pelas Ruas da Gamboa de Cima, Forte de São Pedro e pela Avenida Sete de Setembro. Enquanto essa última serve como a via que desvela a "fachada" principal da praça, voltada para o Palácio e com acesso no mesmo nível da avenida, as outras duas ruas a cercam em uma topografia mais baixa. Ou seja, a praça fica elevada em relação à essas duas ruas com acesso através de escadarias. E aqui aparece o primeiro problema; as laterais da praça para essas duas ruas são apenas longas extensões cegas, como muros, onde nada acontece e ninguém vê quem se desloca pelas calçadas. A sensação de segurança é nenhuma.



Esquina da Rua Gamboa de Cima com Rua Forte de São Pedro






O fato de ter uma configuração de "ilha", sem conectividade sequencial de quarteirões, torna o entorno do espaço pouco utilizado, com suas calçadas estando frequentemente vazias, já que as pessoas sempre preferem andar onde tem movimento de pessoas e coisas para ver. Com isso, salva-se a Rua Forte de São Pedro - ao menos até que a noite caia e nos dias úteis - que tem um comércio ativo e vibrante na outra lateral. Mas a Rua Gamboa de Cima, com um forte militar ao seu lado, e a Avenida Sete de Setembro, com a extensa fachada do Palácio, com portas e janelas fechadas, são transformados em dois trechos de verdadeiras zonas mortas. Ambiente propício aos crimes de oportunidade.

O espaço da praça, propriamente dito, que é histórico, abrigando o obelisco em mármore e o busto em comemoração à chegada do Príncipe Regente Dom João VI, não tem mais do que uma função de jardim, frequentemente sem manutenção, que compõem um espaço aberto na frente do Palácio. Não há nenhuma atividade, equipamento ou mobiliário urbano que incentive a permanência nesse espaço, a não ser de usuários de crack, que há muito lá se instalaram. Um local abandonado pela cidade como um todo, por razões muito óbvias.

Uma das escadarias na Rua Gamboa de Cima






Para completar o cenário, como lócus privilegiado para a prática de furtos e vandalismo, a praça tem ao menos três pontos de escadarias que levam à Rua Gamboa de Cima e proporcionam fuga fácil, em direção à Avenida Lafayete Coutinho, também conhecida como Avenida Contorno.

Enfim, as causas da criminalidade, se sabe, são diversas e complexas. E os crimes letais intencionais (CLI) tem outras lógicas que podem escapar às questões da qualidade do desenhos dos espaços urbanos. Mas a prevenção de uma boa parte dos crimes cotidianos mais comuns, seja às pessoas ou ao patrimônio, e a inibição do vandalismo pode ser, em muito, mitigados com certas decisões de design que ajudam no aumento da segurança nas ruas e bairros das nossas cidades.

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