A Cidade da Quarta-Feira de Cinzas

Por Marcos Rodrigues 

Salvador dos dias que correm talvez seja a cidade que melhor tenha encarnado uma ideia paradoxal de urbanidade: a de que a cidade só existe plenamente quando acontece algo. Quando há música, quando há multidão, quando há exceção. Fora disso, ela parece hesitar. Como se o cotidiano fosse um intervalo constrangedor entre dois grandes acontecimentos.

Salvador vive na véspera. E, sobretudo, no depois.


É a cidade da quarta-feira de cinzas — não como data litúrgica, mas como condição urbana permanente. O dia seguinte. O momento em que o palco é desmontado, os cabos recolhidos, os ambulantes desaparecem, a cidade respira fundo e… esvazia. Resta a paisagem, magnífica. Resta a arquitetura, aqui e ali, ainda resistente. Resta a cidade — mas sem o que a faz funcionar.


O problema emerge quando a cidade deixa de performar e passa a existir. E é justamente aí que se percebe sua fragilidade.


Durante o evento, Salvador é densa, intensa, barulhenta, fotogênica. Nos dias comuns, revela algo inquietantea dificuldade de sustentar uma vida urbana ordinária. Bares fecham cedo. Ruas que pareciam vivas tornam-se corredores de passagem. O centro histórico, que deveria ser o coração cotidiano da cidade, transforma-se num corpo em repouso forçado, à espera do próximo estímulo externo.


Não se trata de nostalgia, nem de moralismo. Trata-se de funcionamento.


A vitalidade urbana não nasce do espetáculo, mas da repetição banal: ir ao trabalho, comprar pão, encontrar alguém por acaso, voltar para casa. A rua viva não é a rua animada; é a rua necessária. Aquela que as pessoas usam não porque há algo acontecendo, mas porque a vida acontece ali.


Salvador, ao contrário, parece ter invertido essa equação. A rua passou a depender de algo extraordinário para justificar sua existência. Quando não há festa, não há motivo suficiente para estar ali. A cidade torna-se intermitente, como uma instalação que só funciona quando ligada.


É a lógica da cidade de eventos — uma cidade que substitui economia cotidiana por consumo episódico, diversidade por monocultura, urbanidade por cenografia. Uma cidade que funciona por picos, não por continuidade. Que concentra renda, mas não a distribui. Que atrai olhares, mas não fixa vidas.


Baudrillard talvez dissesse que Salvador se tornou um simulacro de si mesma: não exatamente falsa, mas hiper-real. Mais cidade na imagem do que na prática. Mais vibrante no discurso do que no uso. Uma cidade que encena sua própria vitalidade.


Rem Koolhaas, com menos melancolia e mais ironia, talvez observasse que Salvador resolveu o problema da urbanidade tornando-a opcional. A cidade funciona como evento, não como sistema. Não é preciso que ela opere todos os dias — basta que funcione intensamente em alguns.


Mas cidades não são festivais. São infraestruturas de vida.


As cidades de verdade conseguem ser plenas quando permitem interações econômicas eficientes. E não apenas para produzirem imagens instagramáveis. Existem para conectar pessoas, trabalho, serviços, oportunidades. Quando isso falha, tudo o mais vira ornamento e imagens de consumo rápido.


A morfologia histórica de Salvador é extraordinariamente favorável à rua densa, mista, pedonal. O problema é que o mercado urbano cotidiano foi deslocado. O trabalho está longe. A moradia cotidiana se esvaiu do centro. O pequeno empreendedor opera sob risco constante. A economia diária foi substituída por ciclos de exceção.


O resultado é uma cidade linda e frágil. Uma cidade que precisa se inflar periodicamente para não colapsar simbolicamente. Uma cidade que confunde intensidade com vitalidade.


A miséria da cidade de eventos não está na festa. A festa, em si, é legítima. O problema está no vazio que vem depois — um vazio que já não é pausa, mas estrutura. Quando a quarta-feira de cinzas deixa de ser intervalo e passa a ser regra, algo está profundamente errado.


Cidades que funcionam não precisam de palco. Elas atravessam o calendário quase indiferentes a ele. Segunda-feira funciona. Terça também. Quarta não carrega simbolismo algum. A vida urbana é previsível, até entediante — e é exatamente isso que a torna resiliente.


Salvador, ao apostar reiteradamente na exceção, no efêmero, parece ter desaprendido o valor do cotidiano. Tornou-se extraordinária nos dias raros e surpreendentemente frágil nos dias comuns. A quarta-feira de cinzas, nesse sentido, não é apenas um dia: é um diagnóstico urbano.


Talvez o desafio não seja criar mais eventos, mas reconstruir a cidade que não precisa deles. Uma cidade que funcione quando não há nada acontecendo. Uma cidade que não dependa da festa para existir.


Porque, no fim, a verdadeira prova de urbanidade não é o auge da celebração —

é o silêncio que a cidade consegue sustentar depois.

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