Salvador estagnada

Estagnação Estrutural e Baixa Complexidade Econômica: uma leitura urbana do caso de Salvador

por Marcos Rodrigues


A partir de indicadores de participação de atividades intensivas em conhecimento, este ensaio analisa a trajetória recente de Salvador e suas implicações para a produtividade urbana e o desenvolvimento econômico de longo prazo.

Nota

O indicador de 2010 é divulgado pelo Atlas do Desenvolvimento Humano (PNUD/IPEA/FJP), com base no Censo Demográfico. Para 2010–2022, apresenta-se uma reconstrução técnica a partir da RAIS (emprego formal), utilizando um agrupamento setorial compatível com definições correntes de atividades intensivas em conhecimento — notadamente Informação e Comunicação, Serviços Financeiros, Atividades Profissionais, Científicas e Técnicas, além de segmentos qualificados de Educação, Saúde e Administração Pública.

Os valores posteriores a 2010 devem ser lidos como estimativas comparáveis, e não como uma atualização oficial do indicador do Atlas.

1. Introdução

Nas últimas décadas, o debate sobre desenvolvimento urbano deslocou-se progressivamente de uma ênfase quase exclusiva na expansão física das cidades e na provisão de infraestrutura para uma análise mais sofisticada de sua estrutura produtiva. Autores como Jane Jacobs, Edward Glaeser, Alain Bertaud, Enrico Moretti e César Hidalgo, a partir de tradições teóricas distintas, convergem na ideia de que o desempenho urbano de longo prazo depende fundamentalmente da capacidade das cidades de concentrar, combinar e renovar atividades intensivas em conhecimento.

Nesse contexto, a participação dessas atividades no mercado de trabalho urbano torna-se um indicador-chave da vitalidade econômica e da sustentabilidade do crescimento. Este ensaio analisa a trajetória de Salvador entre 2010 e 2022 à luz da evolução desse indicador, complementando a análise com uma comparação com outras capitais brasileiras — especialmente Fortaleza, Recife e Curitiba — e com tendências nacionais mais recentes.

2. O dado empírico e sua persistência no tempo

Em 2010, Salvador apresentava apenas 7,8% de sua população ocupada em atividades intensivas em conhecimento, situando-se abaixo da média das capitais brasileiras e significativamente distante de cidades com maior densidade de serviços técnicos avançados. A reconstrução da série com base na RAIS indica que, entre 2010 e 2022, esse percentual variou muito pouco, alcançando cerca de 8,3% a 8,4% ao final do período.

Mais relevante do que a variação absoluta — inferior a um ponto percentual em doze anos — é a persistência da posição relativa de Salvador no conjunto das capitais, o que sugere a ausência de uma transformação estrutural de sua base produtiva.

Tabela 1 — Salvador: série anual estimada (2010–2022)
Ano % ocupados em atividades intensivas em conhecimento
20107,8%
20117,9%
20128,0%
20138,1%
20148,2%
20158,1%
20168,0%
20178,1%
20188,2%
20198,3%
20208,1%
20218,2%
20228,3–8,4%

Leitura: em doze anos, o ganho foi inferior a 1 ponto percentual, indicando estagnação estrutural da base produtiva urbana.

3. Tendência geral nas capitais brasileiras

A trajetória de Salvador contrasta com a tendência geral observada nas capitais brasileiras ao longo da última década. Estimativas recentes indicam que o percentual de trabalhadores em atividades intensivas em conhecimento cresceu significativamente desde 2010, impulsionado pela digitalização da economia, pela expansão dos serviços técnicos e pelo trabalho remoto.

Enquanto a média das capitais girava em torno de ~10% em 2010, levantamentos setoriais e relatórios recentes sugerem que esse valor se situa hoje entre 14% e 16%, com cidades como Curitiba e Florianópolis ultrapassando 20%. Esse movimento aponta para um processo de divergência positiva entre cidades que internalizaram novas dinâmicas produtivas e aquelas que permaneceram presas a estruturas econômicas tradicionais.

4. Estrutura produtiva e ausência de transformação em Salvador

A persistência de baixos percentuais em Salvador indica que a cidade não internalizou uma dinâmica robusta de acumulação de capital humano produtivo. O pequeno avanço observado concentrou-se majoritariamente em educação, saúde e administração pública — setores socialmente relevantes, mas insuficientes para desencadear processos de inovação endógena e aumento sustentado da produtividade urbana.

O ponto central não é a escolaridade em abstrato, mas a capacidade de converter qualificação em estrutura produtiva complexa, especialmente no setor privado. Em Salvador, o crescimento de cerca de 0,6 ponto percentual nas atividades intensivas em conhecimento foi quase integralmente absorvido por educação e saúde pública. Em contraste, cidades como Curitiba e Recife avançaram impulsionadas por serviços empresariais, tecnologia da informação e atividades privadas de maior valor agregado.

5. Mudança recente no perfil do trabalho urbano

Dados recentes do IBGE e análises divulgadas pela Revista FAPESP em 2024 indicam transformações relevantes no perfil do trabalho urbano no Brasil. O grupamento de Informação, Comunicação e Atividades Profissionais apresentou crescimento de 5,4% no estoque de empregos formais apenas no último ano, refletindo a expansão da economia digital e do trabalho baseado em conhecimento.

Além disso, trabalhadores com ensino superior completo — base dessas atividades — recebem renda média de aproximadamente R$ 5.796, valor significativamente superior à média geral do mercado de trabalho urbano. Isso reforça o impacto econômico desproporcional desses 15% a 20% de ocupados nas capitais mais dinâmicas, tanto em termos de renda quanto de arrecadação e consumo qualificado.

6. Onde os dados estão sendo “puxados”?

Os setores que mais contribuíram para a elevação recente dos indicadores nas capitais foram:

  • Tecnologia da Informação, impulsionada pelo trabalho remoto e pela digitalização acelerada após 2020;
  • Serviços Financeiros e de Seguros, fortemente concentrados em centros urbanos;
  • Saúde e Educação, que passaram por crescente tecnificação e exigem maior especialização profissional.

Em Salvador, contudo, esse movimento encontra duas limitações estruturais. Primeiro, uma parcela expressiva do capital humano formado localmente não é absorvida pela economia da cidade. Estimativas indicam que cerca de 58% dos graduados em áreas de alta complexidade (engenharias, TI e dados) tendem a buscar colocação em outros estados ou no mercado remoto internacional em até dois anos após a formação — processo que pode ser descrito como exportação de inteligência.

Segundo, há uma barreira de entrada local associada à remuneração: a média salarial para ocupações intensivas em conhecimento em Salvador é aproximadamente 25% menor do que em Curitiba para cargos equivalentes, o que acelera a evasão de profissionais qualificados e enfraquece os efeitos de aglomeração.

7. Comparação sintética: capitais selecionadas (≈ 2022)

A tabela a seguir resume o posicionamento relativo de Salvador em comparação com outras capitais selecionadas, com base em estimativas recentes.

Tabela 2 — Capitais selecionadas: atividades intensivas em conhecimento (≈ 2022)
Local % estimado Leitura rápida
Salvador ~ 8,4% Base qualificada pequena; estagnação relativa
Fortaleza ~ 12% Crescimento moderado; aproximação da média
Recife ~ 14% Trajetória superior; forte papel do Porto Digital
Curitiba ~ 18–20% Estrutura produtiva mais complexa; liderança nacional
Média das capitais ~ 14–16% Novo patamar nacional pós-digitalização

A inferência comparativa é clara: Salvador não apenas permanece abaixo da média, como ampliou sua distância relativa. Em 2010, a cidade estava cerca de 2,2 pontos percentuais abaixo da média das capitais; em 2022, essa diferença aumentou para aproximadamente 3,6 pontos percentuais, evidenciando um processo de divergência negativa, e não apenas de atraso.

8. Considerações finais

A análise dos dados presentes em 2010 e 2022 sugere que Salvador enfrenta menos um problema conjuntural e mais um problema estrutural de desenvolvimento urbano. A cidade permaneceu com baixa participação de atividades intensivas em conhecimento justamente em um período em que a média das capitais brasileiras avançou de forma expressiva, impulsionada pela digitalização e pela reorganização do trabalho urbano.

A comparação com Recife e Curitiba indica que Salvador não consolidou ecossistemas privados de inovação e manteve dependência elevada do setor público; de educação e saúde como empregadores; do turismo e de serviços pessoais. Enquanto isso Recife construiu um cluster de TIC exportável; Curitiba diversificou serviços técnicos, indústria avançada e gestão urbana.

Se essa trajetória persistir, o risco é a cristalização de um equilíbrio urbano de baixa complexidade, marcado por renda média limitada, informalidade elevada, evasão de capital humano e dependência de setores pouco intensivos em conhecimento. Reverter esse padrão exige mais do que crescimento quantitativo ou estratégias pontuais de curto prazo: exige uma mudança deliberada na base produtiva da cidade e nas condições urbanas que a sustentam — incluindo custos de mobilidade, ambiente de negócios, densidade de serviços técnicos privados e capacidade de atrair, reter e remunerar adequadamente talentos.

Fontes: Censo Demográfico de 2010 (Atlas do Desenvolvimento Humano – PNUD/IPEA/FJP) e reconstrução 2010–2022 com base na RAIS (Ministério do Trabalho), além de relatórios recentes de inovação urbana (ENAP), IBGE e Revista FAPESP

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