Praça da Piedade: Praça ou Jardim Urbano?

Praça da Piedade: da fé ao embelezamento — e o destino de um jardim urbano

Praça da Piedade: da fé ao embelezamento — e o destino de um jardim urbano

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Praça da Piedade, vista geral (décadas de 1930–1940). À esquerda, o edifício do Gabinete Português de Leitura; à direita, a Igreja e Convento da Piedade. Arquivo Histórico da Bahia.

Há lugares em Salvador que parecem carregar, em silêncio, mais de uma cidade sobrepostas. A Praça da Piedade é um deles. Vista apressadamente, é um jardim de sombras e bancos, entre o fluxo da Avenida Sete de Setembro e o comércio do centro. Mas sob esse manto verde repousa uma paisagem densa de significados: um espaço que foi sagrado, trágico e depois ornamental, moldado sucessivamente pela fé, pelo sangue e pelo desenho urbano.

O adro dos capuchinhos

A gênese da Piedade remonta ao século XVIII, com a instalação dos frades capuchinhos em torno da Igreja de Nossa Senhora da Piedade. À época, a área era uma transição entre o núcleo administrativo da cidade alta e as aberturas em direção ao Campo Grande. O conjunto formava um pequeno adro gramado para a devoção pública — mais ermida do que praça, mais retiro do que passagem.

Essa origem devocional imprimiu ao lugar um traço que nunca desapareceu por completo: a introversão. Antes de ser praça, era um espaço de silêncio e contemplação.

Um cenário de martírio: a Revolta dos Alfaiates

No fim do século XVIII, a Piedade ganhou centralidade simbólica por um motivo doloroso. Em 1798, a praça foi palco das execuções públicas dos líderes da Revolta dos Alfaiates (ou Conjuração Baiana): João de Deus Nascimento, Lucas Dantas, Luís Gonzaga das Virgens e Manuel Faustino — homens negros, alfaiates e soldados, que defenderam ideais republicanos. Os corpos foram expostos em diferentes pontos da cidade como advertência.

“Naquele chão de jardim, ergueram-se forcas.”

A memória de 1798 faz da Piedade também um lugar de dor.

O século XIX e o ideal do embelezamento

Ao longo do século XIX, a expansão urbana englobou o antigo recinto capuchinho. Reformas de melhoramento — pavimentação, alinhamentos, arborização — aproximaram a área de uma praça pública. A transformação decisiva, porém, viria já no início do século XX, com a abertura da Avenida Sete de Setembro.

Década de 1940: o “Jardim da Piedade” exibe o paisagismo simétrico e ornamental típico do urbanismo do embelezamento. Fonte: Arquivo Nacional.

Inspirada no modelo haussmanniano de Paris, a nova avenida instaurou fachadas alinhadas, eixos visuais e praças-jardins como vitrines da modernidade. A Piedade foi redesenhada segundo o urbanismo do embelezamento: canteiros simétricos, coreto, esculturas e vegetação ornamental. O antigo espaço devocional e de memória trágica converteu-se em jardim público cuidadosamente composto.

Do ponto de vista urbanístico: praça ou jardim?

Praça cívica

A praça, em seu sentido clássico, é prolongamento da rua: aberta, pavimentada e articuladora de fluxos e usos. É palco de encontros, trocas e manifestações. Em Salvador, exemplos como o Terreiro de Jesus e a Praça da Sé expressam essa vocação cívica, com bordas ativas e centralidade social.

Jardim urbano

O jardim urbano obedece a outra lógica: a do refúgio, do passeio e da contemplação. Predomina a vegetação, com percursos sinuosos, bancos voltados para o interior e uma relação mais introvertida com o entorno — uma pausa estética no tecido da cidade.

Onde a Piedade se encaixa

Depois da remodelação do início do século XX, a Piedade se aproximou nitidamente do tipo jardim. O verde tornou-se protagonista; as bordas, mais fechadas; e o atravessamento, menos intuitivo. Belíssima enquanto composição paisagística, a praça perdeu parte da porosidade cívica que caracteriza uma praça urbana plenamente integrada.

Um jardim francês sobre um chão de história

Essa condição híbrida — entre jardim europeu e lugar de memória local — dá à Piedade sua ambiguidade. O desenho ordenado parece, às vezes, disciplinar o trauma histórico. Fenômeno semelhante ocorreu no Passeio Público, no Rio, e no Jardim da Luz, em São Paulo.

A praça de hoje: vitalidade, visibilidade e CPTED

Observada pelas lentes de Jane Jacobs e de abordagens que visam dar mais qualidade aos espaços públicos como as técnicas conhecidas como CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design), a Piedade atual evidencia o dilema de parte das praças-jardins brasileiras: visibilidade limitada do interior para a rua, permeabilidade reduzida e menor ativação das bordas. Esses fatores tendem a diminuir a vitalidade cotidiana e a sensação de segurança, sobretudo fora dos horários de maior fluxo.

Reconciliação com o presente

Requalificar a Piedade hoje é mais do que restaurar canteiros: é reconectar histórias. Valorizar a memória dos Alfaiates de 1798 com sinalização discreta e percursos de memória; abrir atravessamentos que reforcem o vínculo com a Av. Sete; ampliar a visibilidade entre interior e bordas; e ativar usos compatíveis com o caráter do lugar (pequenos concertos diurnos, leitura, encontros cívicos).

Assim, a Piedade pode voltar a ser praça sem deixar de ser jardim: um espaço verde permeável, de passagem e permanência, em que contemplação e vida cívica se sustentam mutuamente.

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