A MISÉRIA DAS ABORDAGENS INTUITIVAS E O IMPASSE DO URBANISMO PÓS-ESTRUTURALISTA


O pensamento sobre o urbanismo vive algumas contradições peculiares aqui no Brasil: acumulou um arsenal técnico capaz de medir fluxos, analisar configuração espacial, identificar vulnerabilidades, avaliar microclima e antecipar comportamentos — e, ainda assim uma parte do pensamento, sobretudo universitário, sobre as cidades continua baseada em intuições individualizadas.


Não se trata da intuição informada do projetista experiente; trata-se de um tipo mais perigoso: a intuição não verificada, aquela que se torna método por ausência de método.


Nos últimos anos, multiplicaram-se processos de análise do urbano que começam e terminam com frases como “me parece que”, “a impressão que tenho é”, “eu sinto que este espaço pede…”. Essa subjetividade solta, que deveria ser apenas ponto de partida, converte-se em critério decisório. E quando a intuição vira metodologia, o resultado é um urbanismo que oscila entre o improviso estético e o ativismo emocional — ambos insuficientes para lidar com estruturas urbanas complexas, violentas, quentes, desiguais e densas como as brasileiras.


O problema não é ter intuições; é não confrontá-las com dados, não testá-las na realidade, não medir seus efeitos. Uma praça redesenhada a partir das experiências pessoais do arquiteto pode até impressionar no discurso, mas o que define seu sucesso real é se ela será usada, se será segura, se dará conforto térmico, se acolherá fluxos genuínos — e isso não se percebe: se mede.


O urbanismo intuitivo, quando dominante, torna o próprio profissional refém de suas percepções privadas. O resultado é um campo que fala muito de sensações, mas pouco de evidências; muito de “experiências urbanas”, mas pouco de desempenho urbano; muito de subjetividade, mas pouco de intervenção efetiva no espaço.


Se o lado “prático” do urbanismo sofre com excesso de intuição, o lado “teórico” sofre com outro problema: a hegemonia de uma tradição intelectual que, importada seletivamente do pós-estruturalismo francês, colonizou parte do discurso urbanístico brasileiro, produzindo análises sofisticadas na superfície, mas inoperantes no território.


Durante as duas últimas décadas, tornou-se quase obrigatório — em certos círculos acadêmicos — acoplar o estudo da cidade a autores do mofado e inócuo pós-estruturalismo francês. O problema está em sua apropriação acrítica para tratar de temas que exigem precisão empírica e rigor operacional — como segurança urbana, espaço público, mobilidade, caminhabilidade ou placemaking. O urbanismo brasileiro foi inundado por expressões poéticas — que muitas vezes são de fato belas — mas isso não é o bastante.


A pergunta fundamental é: o que essas categorias ajudam a transformar? A resposta honesta: quase nada. A maior parte desse corpo teórico produz descrições subjetivas e irreplicáveis, impossíveis de validar, monitorar, comparar ou aplicar. São discursos que brilham como metáforas, mas desaparecem quando o desafio é redesenhar uma calçada, corrigir um cruzamento letal, iluminar um beco perigoso ou criar sombra num percurso de 500 metros com 40° de sensação térmica.


O que se observa, muitas vezes, é um tipo de romantização da subjetividade: a crença de que acessar experiências íntimas, afetos individuais ou microrrelatos sensíveis seria suficiente para compreender o funcionamento de uma cidade. É uma visão sedutora, mas equivocada. 


O espaço urbano não é uma extensão da interioridade poética do pesquisador; é um sistema físico-comportamental, com estruturas, fluxos, incentivos, barreiras e regularidades que não emergem de narrativas, mas de dados e padrões observáveis.


O risco é claro: transformar o urbanismo numa espécie de literatura comentada, narrativas pessoais, onde a cidade é convertida em texto e o pesquisador em intérprete hermenêutico, livre para imprimir no espaço qualquer leitura simbólica que lhe seja conveniente. Enquanto isso, os atropelamentos continuam, os pontos cegos continuam, o calor continua, a sensação de medo continua — e nenhuma “cartografia afetiva” altera esse estado de coisas.


Ao cidade é afetiva, mas também é térmica, luminotécnica, morfológica, geométrica, comportamental, programática e criminológica. O pós-estruturalismo, quando usado como base para uma metodologia projetual, torna-se um beco sem saída — um intelectualismo estilizado que descreve a cidade, mas não a transforma. Em outras palavras: é um urbanismo bonito de ler mas inútil de aplicar.


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