A Beleza Insegura das Nossas Praças Históricas

Entre o urbanismo oitocentista e as demandas de segurança do século XXI

Entre o urbanismo oitocentista e as demandas de segurança do século XXI

Marcos Rodrigues
Praça da Piedade, Salvador

O Brasil está repleto de praças com desenhos que se repetem de norte a sul: caminhos que se cruzam, um chafariz ou monumento no centro, volumosos canteiros laterais, vegetação densa, recantos sombreados, bancos estrategicamente protegidos por arbustos, e um perímetro quase sempre delimitado — por gradis, muros verdes ou mudanças de nível. São praças visualmente agradáveis, muitas vezes sombreadas e ornamentadas, mas que, na experiência cotidiana, produzem uma sensação ambígua: acolhem durante o dia, mas tornam-se espaços evitados à noite; convidam ao descanso, mas geram receios difusos; parecem públicas, mas funcionam como espaços fragmentados, pouco permeáveis e visualmente opacos.

Esses desenhos não são aleatórios. São o resultado direto da importação dos modelos europeus de jardins públicos entre meados do século XIX e as primeiras décadas do XX — período no qual o urbanismo brasileiro viveu sua mais intensa aspiração de cosmopolitismo formal. E é justamente esse vínculo histórico, tão celebrado em sua época, que explica por que hoje tais praças entram em conflito estrutural com os princípios contemporâneos de segurança urbana baseados no design.

1. De Paris ao Rio: a genealogia europeia do jardim público no Brasil

A origem desses espaços está ligada aos jardins franceses tardo-barrocos e neoclássicos — herdeiros do trabalho de André Le Nôtre e seus sucessores — que privilegiavam:

  • forte geometria axial;
  • perspectiva centralizada;
  • canteiros laterais decorativos;
  • pontos focais (fontes, estátuas, obeliscos);
  • caminhos em cruz ou radial;
  • vegetação como moldura, não como continuidade da rua.

Esses jardins, entretanto, passam por uma transição durante o século XIX: tornam-se espaços públicos mais acessíveis, projetados para o “passeio”, o “flanar”, a apresentação social. Em cidades como Paris, Viena e Madri, os boulevards e praças-jardins tornam-se vitrines da modernidade. Esse ethos é comprimido e reeditado quando chega ao Brasil.

No Rio de Janeiro, o nome incontornável é Auguste François Marie Glaziou, jardineiro francês que atuou entre as décadas de 1860 e 1890. Ele redesenhou o Campo de Santana, o Passeio Público e o Jardim da Aclamação, introduzindo a estética oitocentista europeia adaptada ao clima tropical. O modelo francês tornou-se, ali, código-padrão.

Outros paisagistas reforçaram essa matriz em diferentes cidades brasileiras:

  • Paul Villon em São Paulo,
  • Joseph Dourado e Arsenio Puttemans no Recife e em Belém,
  • diversos jardineiros alemães e italianos espalhados pelas cidades médias.

Entre 1880 e 1930, praticamente todas as grandes capitais passaram por reformas inspiradas na Paris haussmanniana, e suas praças adotaram a linguagem “ornamental-axiada”: cruz de caminhos, centro monumental, bordas densamente plantadas.

Assim nascem, por exemplo:

  • Praça da República (São Paulo),
  • Praça Batista Campos e Praça da República (Belém),
  • Praça XV (Recife),
  • Praça da Liberdade (Belo Horizonte),
  • Praça da Piedade (Salvador).
Praça da República, São Paulo

2. Por que esse modelo funcionava… naquela época

Essas praças não eram pensadas como espaços de circulação. Eram salões verdes, destinados ao passeio elegante, à sociabilidade vigiada e ao simbolismo do “embelezamento” — projeto político que pretendia conferir civilidade a cidades recém-saídas do escravismo, e ainda marcadas por desigualdades profundas.

No final do século XIX, tais praças funcionavam porque:

  • eram constantemente vigiadas por jardineiros, guardas e cocheiros;
  • a vida urbana se organizava em torno de normas sociais rígidas — mulheres desacompanhadas não circulavam livremente, e crianças tinham presença regulada;
  • eram espaços de classes médias e altas, centrais na exibição social;
  • o controle informal era forte: “todo mundo via todo mundo”.

Não se tratava apenas de morfologia, mas de sociabilidade.

O desenho produzia recantos e pequenas “salas verdes” porque a época não demandava vigilância difusa nem trânsito intenso. A praça era, muitas vezes, quase um jardim privado de uso público.

3. A ruptura moderna: do passeio ao atravessamento

A partir da década de 1930, com o modernismo paisagístico e o funcionalismo urbano, esse modelo entra em declínio: ruas passam a priorizar movimento, praças devem ser atravessáveis, o traçado precisa seguir fluxos reais e a vegetação torna-se menos ornamental e mais estrutural.

Ainda assim, grande parte das praças oitocentistas se manteve sem transformações significativas, tornando-se peças fossilizadas em centros urbanos altamente transformados.

4. A inadequação contemporânea: o design defensivo e o problema da opacidade espacial

Os princípios de teorias como CPTED (Crime Prevention Through Environmental Design) — vigilância natural, controle de acesso, territorialidade, manutenção — expõem de forma quase didática por que esse modelo de praça-jardim entra em conflito com as necessidades das cidades brasileiras contemporâneas.

(a) Vigilância natural – comprometida pela própria lógica paisagística

Canteiros laterais densos, arbustos altos, caminhos sinuosos, recantos sombreados e pontos cegos são elementos desejáveis num jardim contemplativo oitocentista.

Mas constituem condições inseguras segundo qualquer avaliação de design urbano preventivo.

(b) Controle natural de acesso – o modelo do “jardim fechado”

Praças históricas contam com poucas entradas formais, muitas vezes alinhadas apenas com a lógica compositiva, não com fluxos reais.

Isso reduz o controle informal, dificulta atravessamentos e, ironicamente, transforma o centro da praça em um espaço de baixa circulação, justamente onde o modelo colocava o elemento simbólico principal.

(c) Territorialidade – espaços de ninguém

A lógica do embelezamento cria uma praça onde:

  • as bordas são densas,
  • o miolo é arrumado demais para usos espontâneos,
  • a variação de níveis desconecta setores,
  • recantos tornam-se “áreas neutras” — nem praça, nem rua.

O espaço perde a clareza territorial.

(d) Ativação – praças pensadas para ver, não para fazer

As praças-jardins não previam usos mistos, nem comércio leve, nem mobiliário contemporâneo.

Funcionavam quando a elite passeava com tempo e disposição.

Hoje, uma praça só se torna segura se estiver ativa — cafés, quiosques, travessias intensas, usos cotidianos. O modelo histórico não oferece suporte a isso.

5. O que se revela, então, é um descompasso estrutural

O problema não é apenas estético; é morfogenético.

Essas praças foram concebidas para um tipo de cidade:

  • menos populosa,
  • menos desigual,
  • mais vigiada por autoridades formais,
  • com códigos de comportamento mais restritos,
  • sem atividades noturnas intensas,
  • com papel social muito distinto daquele que uma praça precisa cumprir hoje.

Ao mesmo tempo, foram projetadas dentro de uma lógica paisagística ornamental, e não urbanística funcional.

Quando colocadas dentro de grandes centros urbanos brasileiros do século XXI — marcados por alta circulação, uso intensivo do transporte coletivo, comércio popular, desigualdade social aguda e dinâmicas informais complexas — essas praças simplesmente não oferecem as condições mínimas de visibilidade, permeabilidade e leitura ambiental que favorecem uso seguro.

6. O desafio contemporâneo: preservar a história sem sacrificar a segurança

O debate atual não precisa opor preservação e funcionalidade.

É possível reinterpretar esses espaços mantendo parte de sua memória formal, mas adaptando sua morfologia à vida urbana contemporânea:

  • reduzir canteiros e abrir visuais;
  • valorizar percursos reais sobre eixos formais;
  • nivelar áreas internas com calçadas externas;
  • introduzir mobiliário e atividades cotidianas;
  • limitar vegetação média;
  • integrar iluminação, atravessamentos e usos cívicos.

Nesse sentido, a questão não é destruir o legado oitocentista, mas reconduzi-lo ao seu papel urbano atual, que é profundamente distinto daquele para o qual foi concebido.

Conclusão

As praças com caminhos em cruz, canteiros ornamentais e desenho fechado representam uma fase importante da formação urbana brasileira — uma fase de aspiração civilizatória e importação de modelos europeus que moldaram nosso imaginário de espaço público. Mas, ao serem avaliadas pelas lentes da segurança dos espaços, revelam uma inadequação profunda às necessidades das cidades contemporâneas.

Essas praças não são apenas “antigas”: são modelos incompatíveis com a lógica do espaço público ativo, permeável e seguro de que precisamos hoje.

Reconhecer isso não é negar o passado — é justamente compreender historicamente por que determinados desenhos funcionaram em um tempo e não funcionam mais, e como podem ser adaptados para que voltem a servir à cidade, e não apenas à memória.

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