A hora e a vez do Rio Vermelho

O acelerado processo de verticalização do bairro do Rio Vermelho, em Salvador, já está alterando significativamente sua paisagem. A velha vila de pescadores, que se transformou em reduto da boemia, passa agora por mais uma transformação.

O último plano diretor de Salvador, de 2016, liberou, de forma indistinta, construções de 12 andares na faixa da orla atlântica. Passados oito anos e descontado o período da pandemia, já é possível ver seus efeitos no velho bairro. Inicialmente na paisagem, mas logo virão as mudanças no microclima, no trânsito, nos padrões de consumo, na segurança e na própria identidade do bairro.


Sim, o Rio Vermelho tende a ficar mais quente. Por conta do maior consumo energético (ar condicionados, elevadores, bombas, geradores etc), ainda que alguns empreendimentos se vendam como “verdes”, “ecológicos” etc. O aumento da temperatura também virá por conta do aumento das superfícies construídas (impermeáveis e refletoras); por conta da maior circulação de veículos. E, eventualmente, até pela redução da velocidade dos ventos.


Sim, o Rio Vermelho tende a ficar mais congestionado. A multiplicação de lajes vai adensar a população e aumentar a quantidade de veículos circulando no bairro. Não há margem para alargamentos ou novas vias na região; é uma malha antiga e compacta.


Sim, o Rio Vermelho tende a ficar mais caro. O padrão anunciado dos empreendimentos foca num público jovem (studios, quarto e sala) mas com maior poder aquisitivo. É de se esperar uma aceleração na mudança, que já está em curso há mais tempo, nos espaços e serviços no entorno, como bares conceituais, galerias de arte e restaurantes de alta gastronomia. 


Talvez, a depender das tipologias arquitetônicas e das suas relações com o pavimento térreo, o bairro fique mais inseguro. O aumento da área de fachadas cegas leva insegurança às ruas. Esse é um processo bem conhecido, há mais de 50 anos, desde que Jane Jacobs escreveu Morte e Vida de Grandes Cidades. E o PDDU de Salvador, inclusive, considera nessa sua última versão, a questão das fachadas ativas. Resta saber se estão levando em conta na aprovação dos empreendimentos.


E, sim, a paisagem do Rio Vermelho está sofrendo uma enorme mudança o que, certamente, vai alterar a sua identidade, até então, de um bairro ajustado à escala humana. Em alguns trechos, como o da Rua do Barro Vermelho, até  a sua praia pode ser bastante afetada pelo sombreamento.


Mas não tem nada de positivo nesse processo? Bom, sempre depende do ponto de vista. Alguns trechos do Rio Vermelho estão claramente abandonados, e até mesmo em ruínas, por desinteresse de investidores. O novo PDDU pode reverter, em parte, isso. O capital privado é o principal construtor da paisagem urbana em quase todo o mundo, mas se alimenta do lucro. Por isso a ação reguladora do estado tem que garantir a parte que cabe ao bem comum. O que nem sempre acontece. Mas é fato que o aumento do potencial construtivo fez esse mercado se mover. 


O metro quadrado do bairro está se valorizando, o que não deixa de ser interessante, do ponto de vista financeiro, para quem já era proprietário. E o adensamento e aumento do padrão de consumo tendem a atrair serviços mais diversos e com melhor qualidade. O Rio Vermelho, por exemplo, carece de serviços prosaicos, como boas padarias e outros serviços do cotidiano.


Mas é claro que essa mudança de padrão construtivo tende a promover uma troca de parte do perfil dos moradores. Por questão social ou por inadequação/insatisfação com a troca de identidade do lugar. 


A própria briga fratricida pela vista para o mar, muitas vezes carece de bom senso, respeito pela cidade (de uma parte dos agentes imobiliários) e, sobretudo, do papel moderador do estado, no caso a prefeitura municipal, na garantia do mínimo de qualidade para, o já citado, bem comum e da manutenção de características históricas que fizeram a fama do bairro. 


O Rio Vermelho tem uma associação de moradores ativa, além de frequentadores apaixonados pela sua alta carga cultural, que congrega da tradição da popular Festa de Iemanjá às tribos urbanas do Rock Baiano - que ali se encontram há décadas - passando pelo antiga boemia intelectual. A transformação do bairro seguramente não será sem discussões, questionamentos e barulho.


É como dizia Charles Baudelaire, testemunha ativa, da brutal mudança que o Barão Haussmann fez na velha Paris medieval, abrindo seus famosos boulevares: « la forme d'une ville / change plus vite, hélas ! que le cœur d'un mortel »; “a forma de uma cidade muda mais rápido, infelizmente, que o coração de um mortal”.

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