O Eclipse do Belo na Paisagem Urbana Contemporânea

A Beleza salvará o Mundo”

— Fiódor Dostoiévski

 

A paisagem urbana, enquanto expressão visível da cidade, tem sido progressivamente apartada de uma tradição que a vinculava à ideia de beleza, proporção e harmonia. No passado, fosse pelas regras do classicismo, pelas articulações vernaculares ou pela sedimentação histórica de camadas construtivas, a cidade parecia organizada por princípios visuais reconhecíveis, mesmo quando sua composição não obedecia a planos regulares. O Belo, entendido aqui não como um padrão absoluto ou estilístico, mas como uma experiência estética partilhável e culturalmente situada, orientava implicitamente os modos de construção, ocupação e valorização do espaço urbano.

Com a chegada da modernidade, esse ideal entrou em eclipse. A Revolução Industrial impôs à cidade uma lógica de produção e circulação incompatível com o ritmo e a escala da experiência estética tradicional. Mais adiante, os paradigmas do urbanismo funcionalista agravaram essa ruptura. Ao priorizar a zonificação, a circulação automotiva e a padronização tipológica, o urbanismo moderno abriu mão da composição urbana como campo estético, substituindo-a pela eficiência técnica e pela racionalidade abstrata.

Já no fim do século XIX, Camillo Sitte alertava para esse afastamento. Em A Construção das Cidades segundo Princípios Artísticos (1889), denunciava a substituição da sensibilidade artística pela régua geométrica. Em tempos mais recentes, autores como Roger Scruton e Leon Krier reafirmaram a urgência de reintegrar a beleza ao debate urbano, não como nostalgia conservadora, mas como necessidade humana fundamental. Ainda que suas propostas, por vezes, se voltem ao passado como ideal, o mérito está em resgatar a discussão estética como campo legítimo do urbanismo.

A ideia desse autores, aos quais me filio, não é uma busca pelo restauro de uma ordem perdida, nem idealizar as cidades históricas como modelos a serem imitados. E acrescento; ao contrário, propõe-se construir ferramentas para ler e qualificar criticamente a paisagem urbana contemporânea, em toda sua fragmentação, dissonância e diversidade. Cidades como Nova York, Berlim, Tóquio ou mesmo São Paulo — compostas por camadas dinâmicas, colagens, acidentes e contrastes — também revelam, sob certos olhares, composições dotadas de força visual, coerência local e mesmo formas de beleza não convencionais.

Assim, defendemos que ainda é possível — e necessário — tratar da paisagem urbana a partir de três eixos complementares:

  1. A Composição Formal, que investiga os aspectos estruturais, morfológicos e visuais da paisagem urbana;
  2. O Valor Simbólico, que aborda a carga histórica, afetiva e cultural inscrita nas formas da cidade;
  3. A Percepção Estética, que propõe critérios para reconhecer qualidades visuais, sensoriais e atmosféricas na paisagem urbana, mesmo quando ela se apresenta em estado fragmentário ou contraditório.

Este é, portanto, um esforço de leitura. Uma tentativa de reconstituir o olhar sobre a cidade como imagem, aceitando sua complexidade mas recusando a indiferença. O Belo aqui não é um estilo, mas uma pergunta aberta, que atravessa os modos de ver, sentir e habitar o urbano

Seguiremos.

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